Artigo publicado em O Globo em 29 de outubro de 2009
Leitura mal feita de Keynes
Antônio Salazar P. Brandão
John Maynard Keynes foi um dos economistas mais influentes de seu tempo, contribuindo de forma efetiva para mudar o pensamento econômico clássico que prevaleceu até por volta dos anos 30 do século XX. Suas idéias ajudaram países a superar a depressão de 1929 e continuaram a influenciar fortemente as políticas macroeconômicas até o final dos anos 1960. A exuberância da economia mundial após a Segunda Guerra Mundial não deu motivos para grandes revisões ou contestações aos paradigmas keynesianos, principalmente no que se refere ao ativismo fiscal.
A partir dos anos de 1970, entretanto, o mundo começou a mudar e um dos sintomas mais claros foram os aumentos das taxas de inflação que se observaram em muitos países. Nos Estados Unidos a inflação atingiu 13,5% em 1980 e na Inglaterra ela chegou 17,97% no mesmo ano, sendo este padrão recorrente em outros membros da OCDE. Nos demais países a situação foi ainda mais grave. A Argentina viveu um período inflacionário agudo, ocorrendo um crescimento de cerca de 3.000% no índice de preços ao consumidor em 1989. No Brasil fenômeno semelhante se deu no mesmo período, não sendo diferente a situação no Chile, no Uruguai e outros lugares.
Ocorreram nestes anos importantes revisões no pensamento macroeconômico com o ressurgimento de paradigmas anteriores às idéias de Keynes. Esta volta aos clássicos foi feita em um ambiente de grande efervescência intelectual e, tal como ocorreu na década de 1930, contribuiu para a formulação de políticas que reduziram a inflação em praticamente todos os países. O Plano Real no Brasil talvez marque o final da era das altas inflações nas principais economias do mundo.
A atuação dos governos durante a crise recente mostrou novamente a importância das idéias keynesianas em relação à política fiscal. A expansão dos gastos públicos, ao lado de políticas monetárias mais flexíveis, está conseguindo reverter o declínio do PIB mundial e afastou o fantasma de uma depressão de mesmas proporções da vivida nos anos 1930.
Mas não nos enganemos: a ressaca será longa e custosa. Elevados déficits públicos estão provocando aumentos das dívidas dos governos e estas, por sua vez, irão pressionar as taxas de juros nos mercados internacionais. Alguns países, inclusive o Brasil, poderão se ver diante de pressões inflacionárias importantes porque seus gastos aumentaram de maneira permanente ou quase permanente.
Uma conclusão singela desta breve descrição é que paradigmas econômicos que se mostraram úteis para a compreensão e modificação de realidades históricas diferentes não morrem. A cada dia a realidade muda e a cada dia é preciso reinterpretá-la e quando necessário nela interferir. Para isto, é fundamental o conhecimento das idéias e paradigmas existentes a cada momento, sendo igualmente importantes os esforços da pesquisa científica para adaptar estas idéias e para encontrar novos paradigmas.
Nos últimos 30 anos um intenso debate se travou entre macroeconomistas sem que houvesse vencedores. O paradigma teórico que é hoje consensual, ou quase consensual, incorpora elementos do pensamento clássico e do pensamento keynesiano, como a hipótese de racionalidade microeconômica, equilíbrio de mercados, expectativas racionais, rigidez de preços e salários, competição imperfeita e, como consequência, o fato de que a política monetária não é neutra no curto prazo. Esta síntese constitui-se em um arcabouço de grande utilidade para a análise dos problemas macroeconômicos da atualidade, tais como os episódios inflacionários dos anos 1970 – 1990 e a crise recente. Contribuirá também para que os governos encontrem maneiras menos custosas de enfrentar os desafios que se seguirão à crise atual.
Infelizmente no Brasil parece que muitos economistas influentes ainda ignoram estas lições da história e da teoria econômica e em função do sucesso das políticas adotadas no episódio recente insistem em defender de forma maniqueísta elementos isolados da teoria keynesiana como se fossem verdades incontestes. Destaca-se neste contexto o ativismo fiscal como instrumento para promover o crescimento econômico sustentável.
O próximo desafio a ser enfrentado pelo país será o de fazer com que a relação dívida / PIB diminua. Superávits primários maiores e déficits nominais menores serão necessários para que isto se materialize. Entretanto, o ajustamento irá ocorrer em um contexto no qual a trajetória de queda da taxa de juros provavelmente terá que ser interrompida tendo em vista pressões inflacionárias internas e o fato de que essas taxas aumentarão nas principais economias do mundo dificultará o financiamento externo. Ignorar tais restrições em defesa de continuidade da política fiscal expansionista irá retardar a retomada do crescimento sustentável e causar desequilíbrios internos semelhantes aos que vivenciamos no passado não muito distante.
Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ.
Um comentário:
Professor,
assino em baixo. O ajuste será necessário (e talvez venha mais cedo do que o esperado). O difícil é fazê-lo diante da política fiscal "anticíclica" adotada:
60% do avanço das despesas do tesouro em 2009 se devem aos maiores gastos com funcionalismo e custeio (manutenção da máquina mesmo, sem contar as LOAS e as despesas com seguro desemprego, por exemplo) e apenas 5% aos investimentos (isso considerando inversões financeiras e restos a pagar de outros anos). Ou seja, com a economia se recuperando essa "política fiscal ativa" se tornará fortemente pró-cíclica. E a conta, como já sabemos, ficará para o Bacen (mais uma vez).
Muito bom o artigo, condizente com o que aprendi no meu curso de graduação em Ciências Econômicas. Só não consegui descobrir o livro que alguns economistas estão lendo - devem ser mais modernos que os nossos (rs).
Abs, Guilherme
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